domingo, 12 de março de 2017

Resenha - O Perigo da História Única - Chimamanda Ngozi Adichie

                                                          AS “HISTÓRIAS ÚNICAS”

O perigo de uma História única  é um vídeo de meados de 2009 , onde a escritora nigeriana Chimamanda Adichie,  ministrou uma  de palestra  durante a TED Talks – organização não-governamental iniciada em 1984, como uma primeira conferência organizada por uma comunidade global. Durante o vídeo, Chimamanda Adichie nascida em Enugu, Nigéria, na África autora premiada de três livros, cujas escritas abrangem questões étnicas, de gênero e de identidade. conta que   já morou nos Estados Unidos, onde ela foi para a universidade. A escritora relata que começou a ler e a escrever  precocemente  e que a leitura de livros escritos por britânicos e norte-americanos influenciaram sua maneira de imaginar as histórias.
    Ela fala um pouco sobre  pré-conceitos ,estereótipos e preconceitos, e que tudo no mundo tem mais de uma história, o que um fala ,que o outro fala e o que realmente aconteceu /acontece .Depois de conhecer as  histórias do seu continente, Chimamanda  passou a  escrever sobre as coisas que reconhecia. A descoberta dos escritores africanos a libertou  de ter um único conhecimento da história sobre o que são os livros. Seus trabalhos estão profundamente conectados a seu país de origem, articulando diferentes experiências de vida e produzindo uma complexa impressão de história e violência. Histórias que criam um conceito sobre a nação, mas,ainda assim, permeáveis e passíveis de que aquelas não sejam as únicas contadas.
    Pela citação de exemplos e casos próprios em seu discurso, ela aborda a necessidade da invesigação, da quebra da parcialidade do que se conta, do que se transmite a outras pessoas.
    A contadora de histórias é  a própria  Chimamanda . Distante dos costumes trazidos pelos livros britânicos e americanos que disse ter lido quando criança, ela estava em seu país com tradições distintas –eles não tinham neve, comiam mangas em vez de maçãs e nunca falavam sobre o tempo porque não era necessário.

Acontecimentos  sobre Histórias Únicas

Chimamanda inicia seu discurso relatando que, quando tinha por volta de 8 anos, ficou atônita ao descobrir que a família do garoto que trabalhava em sua casa, como era costume, havia artesanalmente produzido um cesto de ráfia seca. Até então, ela só havia ouvido que aquela família vivia na pobreza,de forma que a idéia de que algum parente do garoto pudesse realmente produzir algo era impossível para Chimamanda. Assim como só conseguia defini-los como “pobres”,( como se o fato de ser podre lhes tirasse qualquer capacidade ou qualidade) essa era sua única história sobre eles. Aos 19 anos, deixou seu país para cursar universidade nos Estados Unidos. Lá teve episódios inversos da história única: sua colega de quarto se  chocou ao saber que ela falava inglês,pois desconhecia que  língua oficial da Nigéria  e o inglês   ficou decepcionada  quando pediu para ouvir o que chamava de “música tribal”e escutou Mariah Carey tocar na fita cassete que a nigeriana havia levado. A colega de quarto havia sentido pena dela  antes mesmo de vê-la. “Sua posição padrão para comigo, como africana, era um tipo de arrogância bem intencionada: pena” diz. Sua colega de quarto tinha uma história única sobre África, sobre catástrofe.
Ainda na faculdade, um professor disse que um romance escrito por Chimamanda não era “autenticamente africano” porque os personagens daquela obra se pareciam muito com ele – um homem educado da classe média. Ainda, que as personagens dirigiam carros, não estavam famintas e, por isso, não eram “autenticamente africanos”.
A escritora vê a si mesma numa situação em que compartilha de uma história única: nos Estados Unidos, onde estava, havia debates sobre imigração “e, como frequentemente acontece na América, imigração é sinônimo de mexicanos”, diz.
Inúmeras histórias sobre mexicanos enchendo o sistema de saúde, passando escondidos pelas
fronteiras e sendo presos ali eram contadas.
“Nessa história única não havia a possibilidade de africanos serem iguais a ela de forma alguma. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que a pena. Nenhuma possibilidade de conexão como humanos. (...) Então, depois de ter passado alguns anos nos EUA como uma africana, eu comecei a entender a reação da minha colega de quarto para comigo. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e tudo o que eu soubesse sobre África viesse das imagens populares publicadas, eu também pensaria que a África era um lugar de paisagens bonitas, animais bonitos e pessoas incompreensíveis, disputando guerras insensatas, morrendo de pobreza e AIDS, inca-
pazes de falar por si mesmas. Esperando para serem salvas pelo estrangeiro branco e gentil. (...) Eu acho que essa história única vem da literatura ocidental. (...) Então comecei a perceber que minha colega de quarto deve ter visto e ouvido, durante toda sua vida, diferentes versões da história única”

O Poder e a História Única

Chimamanda  dá o indício de que, para se ter uma história única sobre um povo, é só mostrá-lo como uma única coisa repetidas vezes e isso é o que eles serão nessa narrativa. É impossível falar sobre a construção da história única sem mencionar a questão do poder. Como as narrativas são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas realmente dependem do poder. “Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa”, diz a escritora .
Relata ainda,“Eu me lembro de passear no meu primeiro dia em Guadalajara, de ter visto as pessoas indo trabalhar, delas enrolando tortillas no mercado, fumando,sorrindo. Lembro que meu primeiro sentimento foi surpresa. E então eu fui inundada pela vergonha. Eu percebi que estava tão imersa na cobertura da mídia sobre os mexicanos, que uma coisa se formou na minha cabeça: o imigrante abjeto. Eu tinha caído na histórica única sobre os mexicanos e eu não poderia ter ficado mais envergonhada de mim mesma. Histórias tem sido usadas para expropriar e tornar malígno.
Face ao exposto nos vemos remetidos a  fala de  Frantz Fanon  no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado em 1956 . “A reflexão sobre o valor normativo de certas culturas, decretado unilateralmente, merece que lhe prestemos atenção. Um dos paradoxos que mais rapidamente encontramos é o efeito de ricochete de definições egocentristas, sociocentristas.
Em primeiro lugar, afirma-se a existência de grupos humanos sem cultura; depois, a existência de culturas hierarquizadas; por fim, a noção da relatividade cultural.
Da negação global passa-se ao reconhecimento singular e específico. É precisamente esta história esquartejada e sangrenta que nos falta esboçar ao nível da antropologia cultural.
Podemos dizer que existem certas constelações de instituições, vividas por homens determinados, no quadro de áreas geográficas precisas, que num dado momento sofreram o assalto direto e brutal de esquemas culturais diferentes”
Ao falar massivamente de um determinado grupo cultural, comunidade ou povo, como uma coisa única, e tal repetição se objetiva na eficácia da construção e percepções reducionistas e preconceituosas, de maneira a incutir  ideologicamente, estes grupos, povos ou comunidades  de sentidos pejorativos e manipuladores, servindo a interesses políticos e ao poder.

Bakhtin (2004) debate bem com essa passagem, a partir de sua afirmativa de que todo signo, utilizado na formação do enunciado, é ideológico: "a língua não é um meio neutro, que fácil e livremente passa a ser propriedade intencional do falante: ao contrário, está habitada e superpovoada de intenções alheias” (BAKHTIN, 2004, p. 100).
       
Destaca-se, portanto, o caráter ‘deformador’ da ideologia, seu viés de distorção que trabalha na construção de aparências que não correspondem a realidade e sim as construções  mentais hegemônicas da sociedade.A  ideologia é inverdade, mentira, falsa consciência.
As “histórias únicas” municiam valores ideológicos em si, induzindo o senso comum,compondo realidades, transpondo a consciência, a imaginação e engendrar como informação ou único conhecimento sobre uma determinada pessoa ou  lugar.

No ponto de vista de Bakhtin (2004), os signos verbais estão entrelaçados com inúmeros fios ideológicos e servem enredo à todas as relações sociais em qualquer campo.
Baseado nisso, é praticamente impossível falar sobre a construção da história única sem referir-se  a questão do poder. A forma com que as narrativas são contadas, os sujeitos que as narram, as situações em que as histórias são contadas, bem como o numero de vezes que seus pronunciados repetem-se são questões que interligam as narrativas às estruturas do poder. Como afirma Chimamanda Adichie,“o poder é a habilidade não somente de contar a história de outra pessoa, mas de fazer daquela a história definitiva dessa pessoa” (TED Global, 2009).
       A escritora traz a lembrança a palavra “nkali”, palavra da etnia Igbo, que pode ser traduzido como o desejo de “ser maior que outro”. Chimamanda Adichie, assim como no mundo político e econômico, também no universo cultural e discursivo as histórias se definem pelo princípio do “nkali”.

 Os meios de comunicação não são meras formas de obter informações, mas são providos de textos que revelam significados culturais criados em determinados períodos históricos e que estão intrínsecos a mutações comportamentais e conversões intelectuais objetivas nos receptores. Assim, as mídias “controlam, alienam”, a massa através de seus espetáculos e publicações, utilizando-se,na maioria das  vezes, de histórias únicas para fomentar a audiência e criar/reafirmar estereótipos.
 Representações superficiais ,negativas e simplistas achatam as experiências dos outros, dos diferentes, reduzi-as a um modelo único, ideológico, que não corresponde às histórias que os formaram,mais ricas,complexas e diversificadas.
 Para Chimamanda Adichie, essa incompletude gerada pelos estereótipos não é apenas o fato de que eles possam estar errados, característica principal dos estereótipos é exatamente o fato de que eles são incompletos e que “transformam uma história em uma única história” –, tornam fútil  a experiência e negligenciam todas as outras narrativas que formam um lugar ou uma pessoa:
 ``A consequência da história única é a seguinte: rouba-se a dignidade das pessoas. Dificulta o  reconhecimento da  nossa humanidade  compartilhada.Enfatiza o quão diferentes somos em detrimento de quão iguais somos. (TED Global, 2009).``                                                                                                                                                           
Adulteradas do real ou transformadas em frações constitutivas dela,as histórias estereotipadas apenas (re)inventam padrões. Carregam o ínfimo informação e iludem o objeto. Ideologicamente construídas, refletem a realidade segundo projeções de classe diferentes.
Logo, as enunciações devem ter função social, estando comprometidas com a realidade, ainda que ideologicamente construídas, mas condizentes com o real.
As histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar a dignidade perdida.


Conclusão

As histórias têm sido usadas para privar e tornar algo maléfico , mas também podem ser usadas para capacitar e humanizar.
Podem destruir a dignidade de um povo,mas também podem reparar a dignidade perdida. Nesse sentido, diz Chimamanda,muitas histórias tem sua importância .
Dedicada em solucionar as questões, a escritora propõe o engajamento com as duas faces da história, o que ela cita como “um equilíbrio de histórias”, e o desejo da exploração  por todas as histórias daquele ser humano ou daquele lugar .
Do ponto de vista contemporâneo, em que se trazem as discussões sobre cultura, social,identificações e linguagens  – no sentido apresentado por Hall (2001: 39), em que devemos falar, no lugar de identidade, em identificações, para perceber que se trata de um processo sempre em desenvolvimento e nunca finalizado –, Chimamanda aparece como um grande elo  desses assuntos em seu discurso: ela trata da construção da imagem de um ser humano, lugar ou na esfera  do sentido que essa mensagem pode – e, certamente,irá – produzir. Sua construção verbal e simbólica, no que concerne a estereótipos como objetos imagéticos, é verdadeiramente uma teia
de saberes e literatura, também seu ponto de discurso.
Ela assume e apresenta uma versão dela dos Estudos Culturais e pós-coloniais: diz da diáspora, assim como o fez Stuart Hall (2003); fala do saber reconhecer as faces de uma história e seus personagens sem desmerecê-los; trata de minorias, do olhar eurocêntrico, da questão bifurcada
Chimamanda Adichie incorpora o discurso da diferença e se vale do pertencimento a ela para expor momentos de discussão. Assim, pela compreensão própria de seu universo (de diáspora, de exclusão pelo Ocidente, de conhecimento e reconhecimento de seu lugar), a escritora traz diversas histórias de representação e com intento pela conscientização da urgência da busca pelo conhecimento, pelo entendimento do  outro’ e de outros lugares. Sublinha a fuga do arquétipo, do senso comum, da informação pronta, da história única sobre qualquer pessoa, lugar ou aspecto.


Referências

ADICHIE, Chimamanda. “O Perigo da História Única”. Vídeo da palestra da escritora nigeriana no evento Tecnology, Entertainment and Design (TED Global 2009). http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt. Acesso em: 28 de fevereiro  de 2017.

BAKHTIN, MIKHAIL. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 11.ed. São Paulo: HUCITEC, 2004.

http://www.geledes.org.br/racismo-e-cultura-leitura-psicanalitica-e-politica-de-frantz-fanon/#gs.CpAmT44 .Acesso em 03/03/2017.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

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